ABSTINÊNCIA

ana guelere
2 min readMay 24, 2022

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a psiquiatra disse, então, que talvez o problema maior seja esse: a criatividade, maldita benção que leva a alma onde jamais estive e nos incentiva a rascunhar sobre a paz do amor – embora o veja como bicho feroz. a psiquiatra me fez abominar a raiva à recordação, inventar outra rotina, tomar um comprimido por vez, questionar as distâncias, retomar o hábito de leitura. ser menos tolerante à eles e mais cautelosa a mim. ali existe um olhar vago, percebi no primeiro instante, de quem tentou de tudo; de quem não conseguiu. afirma novamente que tal criatividade pode me abrir a passagem ao céu, mas também tem risco de levar-me ao purgatório. confirma no receituário que as condições relevam a má memória e objeções à realidade. e quem inventou que as margaridas têm boca? e, veja só, uma letra melancólica ainda é melancólica, apesar da melodia.

aquele rosto sem dó e piedade foi visto uma vez para nunca mais, entretanto. aquilo que me procede existência me joga do abismo, reconheço. e me tira dele. me empurra ao abismo e me puxa dele. fugi por outro caminho e a virei a cara; o bicho feroz parecia ainda mais feroz entre as quatro paredes desbotadas da sala de espera. animais da mente têm dez vezes o tamanho dos da vida real, por mais que pareçam toleráveis na poesia. o homem no quadro da lateral direita carregava o cansaço de quem foi pego – e repetiu os desabafos que já ouvi de outro nome.

nome que há tempos não está aqui. só existe na minha cabeça

e eu o citei na consulta.

ana guelere/casmurromorreu.

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ana guelere

crio e reviso. convivo com a poesia desde dois mil e alguma coisa. @casmurromorreu.